Escrita, possivelmente, entre fevereiro e agosto de 1253. Quase no término desta carta Santa Clara cita sua irmã Inês (de Assis), que retornou de Monticelli no início do ano de 1253, portanto esta deve ter sido a última correspondência que Inês de Praga (Abadessa Clarissa do mosteiro em Praga, Hungria) recebeu de Clara, que já estava muito debilitada em razão de sua enfermidade, por isso se despede da filha e amiga dizendo "até o trono de glória do grande Deus".
Ó mãe e filha, esposa do Rei de todos os séculos, embora não
tenha escrito mais vezes, como a minha alma e a sua igualmente desejam e de
certa forma até necessitariam, não estranhe nem pense que o fogo do amor
está ardendo menos no coração de sua mãe. A dificuldade é esta: faltam
portadores e o perigo nas estradas é conhecido.
Mas agora, podendo escrever à minha querida, alegro-me e
exulto com você, ó esposa de Cristo, na alegria do espírito. Pois, como
Inês, a outra virgem santa, você desposou de modo maravilhoso o Cordeiro
imaculado que tira o pecado do mundo, deixando todas as vaidades desta terra.
Feliz, decerto, é você, que pode participar desse banquete sagrado
para unir-se com todas as fibras do coração àquele cuja beleza todos os
batalhões bem-aventurados dos céus admiram sem cessar, cuja afeição
apaixona, cuja contemplação restaura, cuja bondade nos sacia, cuja
suavidade preenche, cuja lembrança ilumina suavemente, cujo perfume dará
vida aos mortos, cuja visão gloriosa tornará felizes todos os cidadãos da
celeste Jerusalém, pois é o esplendor da glória eterna, o brilho da luz
perpétua e o espelho sem mancha.
Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de
Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se
toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de variedade, ornada
também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do
sumo Rei. Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a
santa humildade e a inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder
contemplar com a graça de Deus.
Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele
que, envolto em panos, foi posto no presépio! Admirável humildade, estupenda
pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra repousa numa
manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a
bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela
redenção do gênero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a
caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte
mais vergonhosa.
Assim, posto no lenho da cruz, o próprio espelho advertia
quem passava para o que deviam considerar: ó vós todos que passais pelo
caminho, olhai e vede se há outra dor igual à minha. Respondamos a uma voz, num
só espírito, ao que clama e grita: Vou me lembrar para sempre e minha alma vai
desfalecer em mim.
Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade,
ó rainha do Rei celeste! Além disso, contemplando suas indizíveis
delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame, suspirando com tamanho
desejo do coração e tanto amor:
Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor dos teus bálsamos, ó
esposo celeste!
Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega, até
que tua esquerda esteja sob a minha cabeça, sua direita me abrace toda feliz, e
me dês o beijo mais feliz de tua boca.
Posta nessa contemplação, lembre-se de sua mãe pobrezinha, sabendo
que eu gravei sua feliz recordação de maneira indelével no meu coração porque
você, para mim, é a mais querida de todas.
Que mais? No amor por você, cale-se a língua de carne, fale a
língua do espírito. Filha bendita, como a língua do corpo não pode
expressar melhor o afeto que tenho por você, peço que aceite com bondade e
devoção isto que eu escrevi pela metade, olhando ao menos o carinho materno que
me faz arder de caridade todos os dias por você e suas filhas. Minhas
filhas também, de modo especial a virgem prudentíssima Inês, minha irmã,
recomendam-se no Senhor, quanto podem, a você e suas filhas.
Adeus, filha querida, a você e a suas filhas, até o trono de
glória do grande Deus. Rezem por nós.
Pela presente, recomendo quanto posso à sua caridade os
portadores desta carta, nossos caríssimos Frei Amado, querido por Deus e pelos
homens, e Frei Bonagura. Amém.