Acredita-se que esta carta seja de 1238 porque em 9 de fevereiro de 1237 o papa Gregório IX publicou o decreto "Licet velut ignis" prescrevendo uma total abstinência de carne a todos os mosteiros da Ordem de São Damião (é assim que o Papa nomeia os mosteiros que viviam segundo a forma de vida estabelecida por São Francisco para Clara e suas Irmãs), mas Inês de Praga sabendo que em São Damião as normas eram diferentes pede orientação para Santa Clara e quer saber quais eram as prescrições de Francisco sobre a alimentação e o jejum. Nesta carta Clara também dá a entender que tomou conhecimento da bula papal "Pia credulitate tenentes", na qual Gregório IX aceita a renúncia ao hospital que ficava aos cuidados de Santa Inês e suas Irmãs, para que as mesmas possam se dedicar totalmente a Vida Contemplativa.
Clara, humílima e indigna servidora de Cristo e serva das damas pobres, à reverendíssima senhora em Cristo, sua irmã Inês, a mais amável de todos os mortais, irmã do ilustre rei da Boêmia e, agora, irmã e esposa do sumo Rei dos céus. Desejo-lhe as alegrias da salvação e o melhor que se possa desejar no autor da salvação.
Tenho a maior
alegria e transbordo com a maior exultação no Senhor ao saber que está cheia de
vigor, em boa situação e obtendo êxitos no caminho iniciado para obter o
galardão celeste. Ouvi dizer e estou convencida de que você completa
maravilhosamente o que falta em mim e nas outras Irmãs para seguir os passos de
Jesus Cristo pobre e humilde.
Eu me alegro de
verdade, e ninguém vai poder roubar-me esta alegria, porque já alcancei o
que desejava abaixo do céu: vejo que você, sustentada por maravilhosa
prerrogativa de sabedoria da própria boca de Deus, já suplantou impressionante
e inesperadamente as astúcias do esperto inimigo: o orgulho que perde a
natureza humana, a vaidade que torna estultos os corações dos homens. Vejo
que são a humildade, a força da fé e os braços da pobreza que a levaram a
abraçar o tesouro incomparável escondido no campo do mundo e dos corações
humanos, com o qual compra-se aquele por quem tudo foi feito do nada. Eu a
considero, num bom uso das palavras do Apóstolo, auxiliar do próprio Deus,
sustentáculo dos membros vacilantes de seu corpo inefável.
Quem vai me dizer,
então, para não exultar com tão admiráveis alegrias? Por isso, exulte
sempre no Senhor também você, querida. Não se deixe envolver pela
amargura e o desânimo, senhora amada em Cristo, gozo dos anjos e coroa das
Irmãs.
Ponha a mente no
espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o
coração na figura da substância divina e transforme-se inteira, pela
contemplação, na imagem da divindade.
Desse modo também
você vai experimentar o que sentem os amigos quando saboreiam a doçura
escondida, que o próprio Deus reservou desde o início para os que o amam. Deixe
de lado tudo que neste mundo falaz e perturbador prende seus cegos amantes e
ame totalmente o que se entregou inteiro por seu amor, aquele cuja beleza
o sol e a lua admiram, cujos prêmios são de preciosidade e grandeza sem fim. Falo
do Filho do Altíssimo, que a Virgem deu à luz permanecendo virgem depois do
parto. Prenda-se à sua dulcíssima Mãe, que gerou tal Filho que os céus não
podiam conter, mas que ela recolheu no pequeno claustro do seu santo seio e
carregou no seu regaço de menina.
Quem não tem horror
das insídias do inimigo do homem que, pela tentação de glórias passageiras e
falazes, tenta aniquilar o que é maior do que o céu? Pois é claro que,
pela graça de Deus, a mais digna das criaturas, a alma do homem fiel, é maior
do que o céu. Pois os céus, com as outras criaturas, não podem
conter o Criador: só a alma fiel é sua mansão e sede. E isso só pela caridade
que os ímpios não tem, pois, como diz a Verdade: Quem me ama será amado
por meu Pai, e eu o amarei, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada.
Assim como a
gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente, assim também você,
seguindo seus passos, especialmente os da humildade e pobreza, sem dúvida
alguma, poderá trazê-lo espiritualmente em um corpo casto e virginal. Você
vai conter quem pode conter você e todas as coisas, vai possuir algo que, mesmo
comparado com as outras posses passageiras deste mundo, será mais fortemente
seu.
Nisso enganam-se
certos reis e rainhas deste mundo: sua soberba pode chegar ao céu e sua
cabeça pode tocar as nuvens mas, no fim, serão reduzidos ao esterco.
Quanto às coisas
sobre as quais você pediu a minha opinião, acho que posso responder o
seguinte. Você pergunta que festas nosso glorioso pai São Francisco nos
aconselhou a celebrar especialmente, pensando, se entendi bem, que é possível
variar os pratos.
Em sua prudência
você certamente saberá que, com exceção das fracas e das doentes, para quem
exortou-nos e até mandou usar de toda discrição possível com respeito a
qualquer alimento, nenhuma de nós que fosse sadia e forte deveria comer
senão alimentos quaresmais, tanto nos dias feriais como nos festivos, jejuando
todos os dias, com exceção dos domingos e do Natal do Senhor, em que
deveríamos comer duas vezes.
Também nas
quintas-feiras, em tempo ordinário, fica à vontade de cada uma; quem não quiser
não é obrigada a jejuar. Mas nós, sadias, jejuamos todos os dias, exceto
nos domingos e no Natal. Mas não somos obrigadas ao jejum, de acordo com
um escrito do beato Francisco, por todo o tempo da Páscoa e nas festas de Santa
Maria e dos santos Apóstolos, a não ser que essas festas caiam em
sexta-feira. Mas, como disse, as que somos sãs e fortes sempre comemos
alimentos quaresmais.
Entretanto, como não
temos carne de bronze nem a robustez de uma rocha, pois até somos frágeis
e inclinadas a toda debilidade corporal, rogo e suplico no Senhor,
querida, que deixe, com sabedoria e discrição, essa austeridade exagerada e
impossível que eu soube que você empreendeu, para que, vivendo, sua vida
seja louvor do Senhor, e para que preste a seu Senhor um culto racional e seu
sacrifício seja sempre temperado com sal.
Eu lhe desejo tudo
de bom no Senhor, como desejo a mim mesma. Lembre-se de mim e de minhas Irmãs
em suas santas orações.